
A Lei nº 11.343, de 2006, também conhecida como Lei de Drogas, representou um marco importante no tratamento jurídico dado ao tráfico e ao uso de entorpecentes no Brasil. Substituindo a antiga Lei nº 6.368/76, essa norma buscou estabelecer uma distinção entre o usuário de drogas e o traficante, ao mesmo tempo em que reforçou o combate ao narcotráfico.
Entretanto, com o passar dos anos, ficou evidente que a aplicação da lei gerava diversos problemas, como o aumento da população carcerária e a ausência de critérios objetivos para distinguir o consumidor do comerciante.
Desde sua criação, a Lei de Drogas sofreu diversas críticas por parte da sociedade civil, de juristas e de estudiosos do sistema penal. Um dos pontos mais debatidos diz respeito à subjetividade no momento de classificar um indivíduo como usuário ou traficante, já que a lei não fixa quantitativos mínimos para essa diferenciação.
Dessa forma, pessoas com pequenas quantidades de entorpecentes acabam sendo enquadradas como traficantes, especialmente quando pertencem a grupos sociais vulneráveis. A consequência direta é o superencarceramento de
jovens negros, pobres e moradores das periferias urbanas, como evidenciado em diversos relatórios do sistema penitenciário.
Mudanças recentes apontam para redução de danos e menos prisão
Nos últimos anos, propostas legislativas e alterações pontuais buscaram corrigir algumas dessas distorções. Uma das mudanças mais relevantes diz respeito ao fortalecimento das medidas alternativas à prisão, como penas restritivas de direitos e prestação de serviços à comunidade.
Também houve um movimento em prol da objetivação dos critérios legais, com tentativas de regulamentar a quantidade de droga que configura o uso pessoal. Além disso, passaram a ser valorizadas políticas públicas voltadas à prevenção do uso abusivo e ao tratamento dos usuários, em vez da simples punição penal.
Ainda assim, a operacionalização dessas alterações encontra desafios relevantes. Em muitos casos, a polícia militar e os órgãos de persecução penal continuam adotando posturas baseadas em presunções, como a existência de dinheiro trocado, ausência de emprego formal ou histórico criminal, para justificar o flagrante por tráfico.
Tais elementos são frágeis, e muitas vezes resultam em condenações desproporcionais. A ausência de critérios legais bem definidos reforça essa insegurança jurídica e alimenta um sistema penal seletivo e ineficiente.
A jurisprudência tem buscado corrigir excessos da aplicação prática
O Poder Judiciário tem desempenhado papel fundamental na modulação dos efeitos da Lei de Drogas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, tem consolidado o entendimento de que o chamado tráfico privilegiado — ou seja, praticado por réu primário, sem vínculos com organizações criminosas e sem antecedentes relevantes — permite a aplicação de penas menores, com eventual substituição por medidas alternativas. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) discute há anos a descriminalização do porte de pequenas quantidades
de maconha para consumo pessoal. A maioria dos ministros já votou favoravelmente à descriminalização, mas o julgamento ainda não foi concluído. Essa possível mudança jurisprudencial pode representar um divisor de águas na política de drogas nacional.
O impacto das alterações na Lei de Drogas transcende os tribunais. No plano social, há uma expectativa de que a legislação possa contribuir para a redução dos índices de encarceramento, que hoje colocam o Brasil entre os países com as maiores populações carcerárias do mundo.
Também se espera que haja um avanço no enfrentamento ao racismo institucional e à criminalização da pobreza, uma vez que os dados mostram que os efeitos mais perversos da lei recaem sobre determinados grupos sociais.
Uma mudança de paradigma exige mais do que mudanças legais
Além disso, observa-se um avanço no reconhecimento de que a questão das drogas deve ser tratada sob o enfoque da saúde pública. Isso significa abandonar o paradigma exclusivamente repressivo e investir em ações de prevenção, educação, tratamento e reinserção social.
Nesse contexto, medidas como a ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a oferta de tratamento ambulatorial e o acolhimento em comunidades terapêuticas ganham destaque. Contudo, é necessário que tais políticas sejam articuladas de forma intersetorial, com financiamento adequado e acompanhamento técnico qualificado.
O debate legislativo também permanece aquecido. Projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional propõem tanto o endurecimento das penas quanto a descriminalização do uso pessoal. Uma das discussões mais recentes envolveu a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 45/2023, que busca criminalizar o porte de qualquer quantidade de droga, mesmo para uso pessoal.
Essa iniciativa, que caminha na contramão das tendências internacionais e dos posicionamentos do STF, reacendeu a polarização em torno do tema e acirrou os embates entre setores conservadores e progressistas da sociedade.
Conclusão: garantir direitos e enfrentar a seletividade do sistema penal
Diante desse cenário, é possível afirmar que a Lei de Drogas se tornou um ponto nevrálgico do sistema de justiça criminal brasileiro. As alterações legislativas e jurisprudenciais mais recentes representam avanços pontuais, mas ainda insuficientes para garantir uma política criminal justa, equilibrada e eficaz.
Para que a legislação atenda de fato aos objetivos constitucionais de ressocialização, dignidade e proporcionalidade, será necessário investir em políticas públicas de longo prazo, em formação continuada dos operadores do Direito e na escuta ativa da sociedade civil.
A complexidade do tema exige uma abordagem multidisciplinar e transparente. É preciso considerar o impacto das drogas nas famílias, na educação, no mercado de trabalho e na saúde. Também é urgente revisar o papel das polícias, da Justiça e do Ministério Público na aplicação da lei, de forma a evitar abusos e distorções. A mudança de paradigma depende, portanto, não apenas de alterações legais, mas de uma nova cultura jurídica e institucional.
Em síntese, as recentes alterações na Lei de Drogas sinalizam uma tentativa do Estado brasileiro de conciliar o combate ao tráfico com o respeito aos direitos fundamentais. Apesar dos avanços, o cenário ainda é de incerteza. O risco de retrocessos legislativos, o uso seletivo da norma penal e a ausência de investimentos em políticas de prevenção e acolhimento são obstáculos reais. Por isso, é fundamental que o debate continue vivo, informado e comprometido com a construção de uma política criminal que priorize a justiça social e o desenvolvimento humano.
Referências
BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília, 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: jul. 2025.
INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Relatório: “A guerra às drogas e o encarceramento em massa: uma análise crítica do sistema penal brasileiro.” Disponível em: https://www.iddd.org.br. Acesso em: jul. 2025.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br. Acesso em: jul. 2025.